quinta-feira, 20 de agosto de 2020

há consenso científico sobre o momento exato em que começa uma vida? seria quando um gameta se une a outro ou quando um feto desenvolve o sistema nervoso? talvez quando começa a apresentar os batimentos cardíacos? não sei, não sou cientista. tenho um reles diploma de curioso profissional e também interesses diversos.

astrólogos dizem que no momento em que uma pessoa nasce, a disposição dos planetas no cosmos – com referência ao local de nascimento – determina características aparentemente imutáveis na sua personalidade. mas e se essa pessoa "nasce" duas vezes em uma mesma vida? se seu coração para por um tempo e depois volta a bater, esta pessoa viveu um renascimento?

não tenho certezas quanto aos dilemas científicos e astrológicos, mas posso assegurar que minha vida não é a mesma há um ano. em 20 de agosto de 2019, meu coração não bateu por 54 minutos. 

acordei às 13h, depois de seis horas de cirurgia, com a sensação de estar com um toco no peito. sim, um toco. não um oco. parecia que eu tinha um pedaço de madeira, ferro ou algum outro material rígido colando meu esterno recém serrado. de fato, havia "grampos" para unir as partes que certamente causariam dores sobre-humanas no meu tórax que eu teria sentido se não fossem as doses de tramal e outros analgésicos e anti-inflamatórios. passada a peleja, voltemos à poesia.

eu senti, ao abrir os olhos, uma estranha sensação de voltar ao corpo, de retornar à terra após uma viagem extracorpórea em que eu podia ver de longe, os cirurgiões, os enfermeiros e enfermeiras e técnicos e técnicas de enfermagem que me operavam naquela manhã de inverno. como é sabido, o inverno em brasília é rigoroso pela baixa umidade e altas temperaturas. talvez um dos piores cenários para alguém se recuperar de uma cirurgia cardíaca. mas eu me recuperei.

um ano depois, 10 kg a mais graças à nova dieta, aos exercícios físicos e a uma quarentena que se prolonga ad eternum graças à inépcia dos governos em conter a pandemia, eu me sinto vivo. posso não estar forte como sonhava, otimista e crente no futuro como almejava, inspirador como aspirava, mas sinto-me vivo. e isso já é demais em um momento de tamanha fragilidade da vida. e também das relações interpessoais. ontem tivemos uma conversa franca motivada por outras situações familiares, mas que me fez ver os olhos marejados do meu pai pela terceira vez em 30 anos. um homem forte e grande (lato sensu) que pouco chorou na frente da sua família. não por impedimento de uma masculinidade frágil, mas, pelo contrário, pela serenidade e sensibilidade de um homem que é puro coração. que sorte, a minha.

vi também minha mãe viva. vi seus olhos cheios de vida, sua tez linda, seu sorriso retornando ao rosto. quem me conhece, sabe que em 25 de março de 2020 eu tive o pior momento da minha vida, quando achei que minha mãe perderia a dela. e hoje ela está viva, linda como sônia braga e forte e decidida como gabriela.

diante deles, vi uma criança de 12 anos que amadurece como eu jamais imaginaria. que cresce tanto em espírito e mentalidade quanto fisicamente num momento em que as paredes de casa se tornam pequenas para esse processo. mas é necessário que aqui ele fique, para viver bem os muitos anos que quero que sua vida tenha. um jovem lindo, honesto, sensível e carinhoso. uma criança de amor.

ao lado dele, uma mulher de 33 anos, minha irmã, com toda a firmeza e bruteza de um diamante que espera lapidar-se. o que ela vale para mim é inestimável, incalculável. mas assim como o diamante, é preciso brilhar para ter reconhecimento. ontem ela brilhou e abriu meus olhos. eu tenho muita sorte de tê-la ao lado.

em outra casa, mas dentro do mesmo peito, ainda cabem duas outras mulheres que prolongam na nossa linhagem a palavra de dina, o amor de dina. mãe e filha, minha irmã e sobrinha me lembram que a vida pode ser breve, mas não deixa de ser um milagre. é complexa a conjunção de fatores que fazem uma vida acontecer. é muita sorte ter todas elas comigo.

minha vida se molda com as mãos sensíveis e cuidadosas de todas as pessoas das minhas famílias, a de sangue e a de afeto. eu agradeço a cada uma delas pela vida que tenho. eu agradeço a Deus pelo milagre da existência. e também da reexistência.