segunda-feira, 29 de junho de 2020

o isolamento me deu a chance de voltar para dentro, pisar em um terreno que adiei por considerar a missão complexa ou demorada. pois agora que há bastante tempo e poucas rotas de fuga, precisei confrontá-la.

vivi, em 108 dias, momentos de ansiedade, incerteza e solitude intensas. experimentei mesmo que cercado por minha família e em constante contato (virtual) com boa parte das amizades mais valiosas. hoje, entendo que todos os sentimentos causados pela pandemia (o desconhecimento do que ainda vai acontecer, a falta de perspectiva, a paranoia e a obsessão com a limpeza e seus protocolos) não se comparam aos 15 minutos em que tive a cabeça de minha mãe inconsciente sobre meu colo no fim de março. eu tenho uma lembrança clara do que vivi, mas não sei precisar quanto tempo durou tudo. minha mãe sofreu um aneurisma cerebral em casa, três dias após completar 65 anos.

construir uma relação mais sadia e respeitosa com a minha família tem sido o saldo positivo deste isolamento. havia anos que os momentos que vivíamos já não me traziam tanta alegria. maioria soava-me como o cumprimento de um roteiro de socialização (aniversários, formaturas, trocas de emprego). mas, hoje, a simples divisão de uma tarefa doméstica traz significado e fortalece as recordações que guardarei para o futuro. seja ele qual for, se houver.

um dia, durante uma refeição, questionei minha mãe sobre as recordações que ela guardava da infãncia destituída de luxos que viveu em bairros de classe média baixa de goiânia. num esforço sensível, ela trouxe à tona os momentos de felicidade comedida intercalados com outros de disciplina e aprendizado em uma casa com nove pessoas.

tentei fazer o mesmo esforço para me lembrar da minha própria infância, vivida em um apartamento de 54 m² com meus pais e minhas duas irmãs. logo, com quatro pessoas a menos que na casa em que minha mãe cresceu. lamentei que as lembranças que eu destaquei também se restringiam à felicidade comedida e à disciplina. não surgiram recordações claras de momentos espontaneamente felizes ou cuja relevância era tão maior quanto menor fosse a pompa da ocasião. uma lástima. apesar disso, certamente vou me lembrar desta conversa com minha mãe, pois ela me diz muito sobre o que eu e ela tendemos a fixar na parede da memória.

após eu tomar em mãos uma olympus pen generosamente emprestada por um velho e querido amigo, cresceu a vontade de documentar um pouco do que vivemos nos três últimos meses. e disto, surgiu esta série de dípticos. com ela, quero criar as lembranças ao alexandre do porvir. para que a ele não faltem imagens de momentos de iluminação, de esclarecimento. cenas tão prosaicas quanto importantes de um momento jamais vivido por qualquer uma das gerações que vivem hoje debaixo do teto desta casa que eu adoro.

aab
29. jun '20

sábado, 20 de junho de 2020

100 dias de quarentena. 115 dias desde o primeiro caso de covid-19 no brasil. 50 mil mortos durante a pandemia. mais de 1.000.000 de casos até hoje.

comecei falando de números que assustam. mas depois de tanto tempo, os números perdem o impacto. como ficou claro hoje, no comentário do meu vizinho que se gabava comigo do novo jeep que ele comprou. "a vida não pode parar!", comentou. pois é. para 1 milhão de pessoas ela está parada dentro de um quarto residencial ou hospitalar ou no leito de uma UTI. isso sem contar o inestimável número de parentes enlutados que perderam 50 mil pessoas desde 26 de fevereiro.

durante esta pandemia, minha mãe sofreu um aneurisma cerebral, eu me recupero (ainda) de uma cirurgia cardíaca e minha família permanece saudável, apesar disso tudo. nossos privilégios e nossas seguranças nos permitem levar uma vida segura e razoavelmente cheia, mesmo durante o isolamento social. aposentados ocupados com tarefas domiciliares, trabalhadores cumprem suas 40 horas de trabalho semanal, que hoje não são mais tão bem definidas. isso não se compara à dor das famílias que perderam alguém.

eu não sei o que é estar angustiado por saber que um parente contraiu a doença que ainda não tem cura nem vacina. e eu tenho muitos parentes espalhados por todo o país. isso é mais que sorte, é privilégio. pois graças a Deus minha família tem segurança para permanecer saudável e segura. mas não apenas isso, tem conhecimento e empatia para saber que deve ficar em casa, permanecer distante para viver bastante.