domingo, 26 de fevereiro de 2023

 o flávio é um ser humano ímpar. como alguns dos meus amigos, flávio ficou amigo também de toda minha família. ele sempre recebeu a todos com um sorriso simpático – quase tolo – que sempre o defendeu de críticas a sua índole. flávio não era puro. pelo menos não no sentido cristão. mas ele com certeza viveu com tamanha transparência, que nem mesmo o mais pretenso puro teria a ousadia de apontar máculas na reputação de flávio. a única marca visível eram as cicatrizes que carregou desde 2018.

seu coração grande exigiu muito de seu corpo, que foi sendo fragmentado de dentro para fora. não tinha como qualquer ameaça externa alcançar o coração de flávio. quiseram a vida, o destino e o imponderável que a maior de suas artérias começasse a se encher de fissuras. um episódio aterrorizador anunciava as dificuldades que ele viria a enfrentar com a primeira cicatriz exposta. cicatriz essa igual à que eu carrego no meu peito. 

apesar de as cicatrizes serem iguais, as razões eram diferentes. flávio conviveu por anos com uma dissecção de aorta que forçou sua aposentadoria aos 30 e poucos anos e impediu que flávio voltasse a frequentar academias com a intensidade comum a alguém de sua idade. a última cirurgia, realizada em 24 de fevereiro de 2023, dava esperanças a flávio e sua família. mas novamente a vida, o destino e o imponderável agiram e sacramentaram que aquela seria a última incisão sobre o corpo de flávio. o último bisturi que cortaria sua pele de forma inexorável e irreversível. 

flávio faleceu aos 37 anos, após 14 horas de cirurgia, deixando esposa, uma mãe (também viúva), uma filha e dois irmãos (também órfãos de pai). a vida tem mistérios que eu nem me atrevo a entender. cabe a mim aceitar a imponderabilidade, a imprevisibilidade e a incontrolabilidade desta dádiva que nos é dada sem consentimento e nos é tirada sem aviso prévio. 


cabe-me acreditar que cada lufada de ar, cada pão, cada noite bem dormida é um milagre em minha vida. e carrego no peito a cicatriz que vai me lembrar do meu irmão flávio, do seu sorriso bobo e de sua leveza. 

viva flavim.